Direção: Mike Leigh
Roteiro: Mike Leigh
Vera Drake (Imelda Staunon) é uma
senhora amável, que vive com sua família no subúrbio de Londres na década de
1950. Completamente devotada a cuidar de todos ao seu redor, ela vive para seu
marido e os seus dois filhos adultos, além de se mostrar sempre sorridente e
prestativa para seus vizinhos e amigos mais próximos. Não demora muito tempo de
projeção e descobrimos outra atividade que ocupa o seu tempo: Vera realiza
abortos em jovens sem recursos com uma bomba de água, desinfetante e sabão, num
procedimento que ela chama de “ajudar jovens moças”.
A direção de Mike Leigh é muito
hábil em estabelecer com pouco tempo de filme a personalidade de Vera Drake,
sua rotina com sua família e amigos e o tom da narrativa. Conhecemos a família
Drake com poucas cenas acompanhando as tarefas diárias de trabalho de seus
membros e suas refeições em casa. Com planos muito fechados e constantemente
enfocando seus atores de costas, Leigh consegue mostrar o quão pequeno é o
apartamento dos Drake e o quão próximos e íntimos eles são uns dos outros, o
que torna ainda mais chocante quando mais tarde o segredo de Vera é revelado. Outro
ponto importante que Leigh faz questão de enfatizar é a frequência dos
procedimentos de aborto feitos por Vera, sua precariedade, os riscos que
oferecem às moças e a naturalidade com que ela os encara: como se tivesse
cuidando de um doente ou uma criança machucada. Leigh faz questão de mostrar
com detalhes cada um deles. E algo que achei genial foi o contraponto que Leigh
estabelece com a água aquecida na chaleira tanto para o aborto quanto para o
chá que Vera serve às suas visitas. Mostra com talento a ambiguidade das
atividades de Vera. Com o mesmo sorriso ela serve chá para suas visitas e
realiza um aborto.
O ritmo da narrativa jamais se
perde porque Leigh conta a história num crescendo
constante, causando sempre mais interesse no expectador sobre quais serão as
consequências da conduta da protagonista. Dois dos momentos mais tocantes do
longa (ele tem muitos) são o pedido de casamento de um amigo da família à
Nellie, filha de Vera, devido à singeleza e compaixão que sentimos por aqueles dois
personagens tão acostumados à ter tão pouco na vida e o momento em que Vera é surpreedida
pelos policiais em sua casa diante de toda a sua família. Apenas nos olhos da personagem
conseguimos entender tudo que ela sente no momento. Mesmo considerando
superficialmente que só estava “ajudando moças em necessidade”, ela no fundo
sabia que estava fazendo algo que não era certo (ou dentro da lei). E então
chegamos à atuação de Imelda Staunon.
Imelda carrega o filme nas costas
e responde a toda responsabilidade que a tarefa exige com perfeição. O
brilhantismo de sua atuação é fundamental para o sucesso do filme. Uma atriz
medíocre ou menos talentosa poderia fazer com que sentíssemos ódio de Vera não
deixando claras as suas complexas motivações. Imelda faz com que sintamos
simpatia por ela apesar de sua conduta colocar em risco a vida das moças, além
do que também causou em mim (algo que acho genial quando acontece) a
curiosidade para saber mais sobre o seu passado e o que a levou a adotar essa
conduta, visto que logo de início sabemos que ela não cobra pelo procedimento
que induz o aborto. Imagino que ela deve ter passado pela mesma situação em que
se encontram as moças quando era jovem. Ou tenha passado por algo parecido em
sua família... Mas é só uma divagação sobre um personagem que conseguiu atingir
essa complexidade.
O roteiro não entra no mérito da
legalidade do aborto e muito menos na discursão religiosa ou moral de certo e
errado. O tema está ali presente para o espectador lidar com ele e para
transtornar a vida dos personagens. E Leigh não poupa nenhum deles. Todos
sofrem as consequências dos atos de Vera de forma brutal, desde a moça que se
submeteu ao aborto e quase morreu e sua mãe que é obrigada a depor na polícia até
a família de Vera, que desmorona diante do fato de ter seu membro mais idôneo
sendo levado para a cadeia e principalmente para Vera, que passa pela
humilhação de ter sido desmascarada em seu lado mais sombrio até então
desconhecido por quase todos. Outro momento extremamente tocante do longa é
quando Vera se vê obrigada a contar para seu marido o porquê de estar presa.
Não escutamos nenhuma palavra sair de sua boca, mas a vergonha e humilhação
estão estampadas em seu rosto.
O segredo de Vera Drake é um grande filme, que além de arte e
entretenimento de alto nível, ainda ganha pelo fato de levantar uma discursão
sobre um tema que ainda precisa muito ser dissecado e debatido.