terça-feira, 11 de maio de 2010

Boogie Nights – prazer sem limites (Boogie nights)

Boogie Nights – prazer sem limites (Boogie nights) – EUA – 1997

Direção: Paul Thomas Anderson

Roteiro: Paul Thomas Anderson

Confesso que assisti aos mais importantes filmes de Anderson, digamos assim, em ordem cronológica inversa. Primeiro, fiquei impressionado com a intensidade dramática de Sangue Negro. Depois, fiquei de queixo caído pela inventividade e profundidade de Magnólia, e agora, mais uma vez, fui surpreendido pelo talento demonstrado nesse transgressor Boogie Nights.

O filme conta uma história de biografia mais do que batida no cinema, abordando ascensão, auge e declínio de uma figura. O que faz diferença é como a história é contada. Neste caso, é Dirk Diggler, um jovem ator de filmes adultos que se torna uma estrela do dia para a noite devido ao seu grande talento para o ofício descoberto pelo diretor Jack Horner interpretado brilhantemente por Burt Reynolds. O grande mérito do filme de Anderson é retratar o mundo dos bastidores de filmes pornô com muita naturalidade, sem julgamentos e preconceitos. Livre de qualquer indício de moralidade. Todos os pertencentes àquele meio estão ali por uma razão emocional diferente. Seja o desejo de se sentir bom em alguma coisa, como o protagonista, seja pela necessidade de oferecer amor de mãe por causa da rejeição que sofre por parte de seu filho, seja pela frustração de não conseguir se tornar um diretor de filmes de respeito, ou para ficar perto de sua esposa que é atriz, ou mesmo por ser um homossexual enrustido que vê nesse negócio uma oportunidade de realizar seus desejos. Enfim, Anderson consegue a façanha de, com um elenco enorme, conseguir desenvolver cada um dos personagens e dar profundidade a eles.

Aliás, talento é o que não falta a Paul Thomas Anderson. O roteiro é forte e conta uma história importante, mas nas mãos do diretor errado poderia resultar em um filme vulgar e sem o menor propósito. Mas Anderson tem uma qualidade em sua filmagem inigualáveis, semelhante um pouco a de Tarantino. O filme já começa com um plano-sequência maravilhoso que eu não tenho nem como imaginar a logística envolvida para a sua realização. A câmera sai do letreiro da boate, dá uma volta pela rua, entra na boate e acompanha por vários minutos os personagens no meio da multidão, seja Jack, o diretor, a atriz Rollergirl em cima de seus patins, entre outros. Simplesmente perfeito. Esse cuidado com a imagem Anderson exibe em todo o longa, com enquadramentos inventivos e outros tantos planos-sequência durante o filme. Dois deles que me marcaram foram um durante uma festa ao redor da piscina da casa de Jack Horner em que a câmera, pasmem, mergulha na água junto com um personagem, e outro durante o assassinato de certa mulher no filme, no qual o assassino encontra a mulher na cama com outro homem, sai friamente do quarto e caminha até seu carro onde a arma se encontra, volta no quarto e atira nos dois. Tudo isso acompanhado pela câmera de Anderson sem um só corte. Esses planos sem corte servem não só para Anderson exibir seu talento, mas para ajudar a contar a história, que tem um tom de documental. Eles causam ainda mais tensão, como no caso do assassinato. Fazem com que o espectador se sinta um observador presente no lugar onde os fatos acontecem.

Outro aspecto de Paul Thomas Anderson que já disse é a profundidade de ele dá para cada um dos seus personagens, conseguindo mergulhar fundo na mente deles, mesmo que dispondo de pouco tempo na tela. Um exemplo é a mãe de Dirk, que transfere para o filho a sua própria frustração, e também o pai do rapaz, impotente diante da vida. Temos ainda a atriz interpretada pela sempre maravilhosa Juliane Moore, que se mostra a personagem mais sensível e vulnerável do filme, com sua necessidade de dar amor materno e de ser amada em retorno, assumindo a postura de mãe de Dirk, mesmo fazendo cenas de sexo com este. Isso já mostra a complexidade dos relacionamentos desenvolvidos por Anderson. Outra personagem interessante do filme é a Rollergirl (Heather Graham), que passa todo o filme em cima de seus patins, encarnando algum tipo de fantasia sexual. Sua cena mais forte é quando faz sexo diante de uma câmera com um colega de colégio que a reconhece e aproveita a oportunidade para humilhá-la, porque provavelmente foi rejeitado por ela na adolescência. A cena que se segue é uma das mais fortes do filme.

A direção de Anderson se assemelha em alguns pontos à de Tarantino, apesar de achar que Anderson explora mais os arcos dramáticos da história. Ambos usam os já falados planos sem corte, retratam a violência com realismo sem reservas, primam pelo visual de seus filmes e se dedicam na construção dos diálogos. Mesmo que às vezes os personagens parecem falar de coisas triviais, eles estão revelando facetas ocultas de seu caráter e personalidade.

É nesse ponto que as atuações do brilhante elenco entram em ação. Mesmo com pontas, John C. Reilly, Heather Graham, Philip Seymour Hoffman e Hilliam W. Macy têm seus momentos em tela para mostrarem seus talentos. Mark Wahlberg encarna Eddie Adams/Dirk Diggler com muita intensidade e sensibilidade. É interessante ver como ele se prepara antes de gravar suas cenas, parecendo que está gravando um filme de kung fu. A inocência do personagem de 17 anos prestes a gravar uma cena de sexo chega quase a causar pena no espectador. Outro destaque é Burt Reynolds, que incorpora o diretor Jack Horner com perfeição. Ele encara seu trabalho como se fosse um Steven Spielberg dos filmes pornôs. Os momentos em que ele mostra sua vulnerabilidade ou tem sua mediocridade exposta enquanto diretor são comoventes.

O amadurecimento e perda da inocência do personagem de Mark Wahlberg são retratados de forma brilhante, servindo como uma metáfora para a juventude de forma geral, e também mostra o pessimismo de Anderson com relação à sociedade americana. Anderson é irônico e ousado ao fazer um filme sobre o mundo da pornografia nos Estados Unidos, país tão moralista e que tanto tenta esconder seus podres. O país é contraditório, como qualquer moralista. Ao mesmo tempo em que o Presidente prega com veemência a moral e os bons costumes, o país possui a maior indústria pornográfica do mundo. Boogie Nights, assim como outro clássico que veio depois, Beleza Americana, têm a mesma ousadia de trazer à superfície o lado escondido.

A direção de arte recria os anos 70 e 80 com perfeição, distinguindo muito bem as duas décadas, e no fim do filme, um pouco dos anos 90. Os figurinos têm a mesma qualidade e função artística. A trilha sonora é um show à parte, com canções que se encaixam perfeitamente nos momentos certos, seja pelo som ou pela letra.

Hollywood precisa muito de diretores como Paul Thomas Anderson. Ousado, talentoso, subversivo e que não tem medo de errar. Boogie Nights é obrigatório.

Nota: 10